Jussara Lucena, escritora

Textos

Sampi

Ainda ofegante e com a roupa encharcada pelo suor, Eva tentava se localizar no quarto escuro. Um tênue raio de luz vindo da rua atravessava a fresta deixada pela cortina e iluminava o rosto de uma de suas antigas bonecas, que repousava sob a cômoda em frente à cama. Felizmente estava em casa.

Sussurrou, esboçando um pedido de socorro. Desistiu. Não incomodaria a tia. Levantou, foi até a janela e experimentou um pouco da suave brisa. Serviu-se de água, arrumou o travesseiro, os lençóis e voltou à cama.
Esforçava-se em vão na tentativa de dormir novamente. As cenas do sonho voltavam aos seus pensamentos. Acendeu a luz do abajur, apanhou o livro de anotações e uma caneta. Começou a registrar a experiência.

Escreveu por quase uma hora. Ao final, esboçou um desenho onde os seus pais tinham ao fundo um rosto encoberto por sombras, deixando à mostra apenas uma marca em forma de raio na região do queixo. Abaixo do desenho, em letras garrafais “O FIM” e um símbolo desconhecido para ela: Ϡ.
O relógio marcava cinco horas. Já havia algum movimento na rua. Banhou-se e vestiu o uniforme da escola. Quando a tia chegou para acordá-la, surpreendeu-se com a prontidão. Quase não tocou o seu café da manhã.

No ônibus mal percebia a baderna à sua volta. Quando observava pela janela o cinza do concreto, via em cada reentrância o rosto sombrio que surgira em seu sonho. Na passagem pelo túnel, o eco do barulho dos automóveis parecia reproduzir o som do nome que não lhe saía da cabeça.

Já na escola foi direto para a biblioteca. Durante toda a manhã vasculhou os arquivos das edições dos jornais locais. Na capa de um dos exemplares surgiu a nota do desaparecimento de um casal de promotores. Apressou-se em chegar às páginas policiais. Não tinha mais dúvidas: eram seus pais. Já havia se passado seis anos desde o seu aniversário, quando viu os pais pela última vez. Arrancou da mochila o caderno de anotações e enquanto lia a reportagem comparava os fatos com seus registros, feitos logo depois que acordou do pesadelo.

O nome que não lhe saía da cabeça era o do prefeito da cidade: Diaz. O sujeito que frequentava a casa do tio, companheiro das partidas de tênis e dos jogos de cartas. Pesquisou sobre o símbolo. Era a letra grega Sampi. Não contaria nada, precisava descobrir mais.

Na volta da escola, por mais que disfarçasse, olhou os tios com desconfiança, o que foi percebido pela tia, acostumada a vê-la chegando sempre com um sorriso no rosto, mesmo nos momentos difíceis.

No meio da tarde, a tia pediu que ela fosse até a livraria buscar um livro que encomendara. A tia, que já havia descoberto suas anotações noturnas, entregou o caderno ao marido. Ele deu um telefonema, foi até o quarto e apanhou algo na gaveta de cabeceira.

Quando Eva chegou os tios já a esperavam na entrada da casa e fizeram sinal para que entrasse no carro. Acomodou-se, percebeu que havia uma terceira pessoa. As portas foram travadas e o carro entrou em movimento O homem, vestido de preto, tirou o cachecol e o chapéu de feltro. Ela já o conhecia. Sem a barba deixou à mostra a marca em forma de raio. O prefeito Diaz pediu a Eva se mantivesse calma. A tia fez o mesmo, precisavam mostrar algo a ela. O tio reafirmou que o prefeito era um grande amigo da família. Silêncio. A menina, intrigada e insegura, olhou disfarçadamente para Diaz e percebeu em seu dedo um anel com a estampa da letra grega Sampi, a última letra do arcaico alfabeto grego: “O FIM” - pensou ela.

O carro seguiu pela estrada de acesso à cidade vizinha. Uma chuva leve começou. Pararam em frente a um cemitério. Os portões estavam fechados, a noite por chegar. Entraram por um portão lateral.

O tio apanhou uma pá no porta-malas do carro. A tia e o governador saíram na frente. O tio acenou com a cabeça pedindo que ela os seguisse. Num dos túmulos a lápide com os nomes dos pais de Eva. O tio retirou o gramado que cobria as tampas de concreto usadas para selar a cova. O prefeito o ajudava. A menina virou o rosto imaginando a cena seguinte. A tia colocou a mão em seu ombro e disse que estava tudo bem. Ela voltou seus olhos no momento em que o tio abria um dos esquifes. Estava vazio. O tio abriu o casaco para retirar o que apanhara na gaveta de cabeceira.

A garota pensou no pior, ensaiou uma fuga. O prefeito pediu que ela esperasse, pois o outro esquife também estaria vazio. Realmente estava. O tio mostrou para a menina um tablete, ligou-o, e em seguida reproduziu um vídeo.
Na gravação os pais dela explicavam o acontecido. Haviam colocado na cadeia os chefes de uma quadrilha de traficantes que usavam o comércio de drogas como fachada.

Logo depois disso vários assassinatos aconteceram e um a um os jurados que haviam participado da condenação foram desaparecendo. O delegado do caso e sua família morreram num acidente. Assim, eles decidiram se afastar para proteger a garota. Simularam a morte para que as investigações prosseguissem. Como disfarce, plantaram na imprensa informações de uma divergência entre eles e o então prefeito, colocando sobre ele as suspeitas do desaparecimento dos seus amigos. O prefeito abriu mão de sua candidatura ao governo em nome da amizade. Por falta de provas contra Diaz o caso foi arquivado. Eva lembrou que os jornais citavam o desaparecimento de partes dos corpos das vítimas da organização.

A garota ouvia tudo atentamente. Lágrimas corriam em sua face num misto de felicidade e de tristeza pelo tempo de solidão sem os pais. Ela queria saber onde eles estavam. O prefeito prometeu que no dia seguinte ela os veria.

Recolocaram tudo em seu lugar e pegaram a estrada de volta.
Pararam em um restaurante de beira de estrada, depois num posto de combustível. Diaz pediu licença e saiu, precisava ir ao banheiro. Os tios e a menina ficaram no carro enquanto era abastecido. Tia e sobrinha abraçavam-se enquanto o tio, com olhos de ternura as observa pelo retrovisor interno do carro.

O prefeito fez uma ligação telefônica. Instantes depois o posto de combustíveis explodiu e junto com ele o carro, seus ocupantes e um funcionário do posto.

No dia seguinte, a primeira página dos jornais locais noticiava a explosão do posto de combustíveis e também o incêndio de uma casa nos arredores da cidade. A polícia informava a existência na casa de dois corpos carbonizados, um casal, ainda não identificados.

Em seu escritório o prefeito articulava o início de sua candidatura ao Congresso. Numa segunda reunião ordenava as ações de sua organização proibida, definindo novas rotas para distribuição. Decidia quem seriam as próximas vítimas, incluindo autoridades e membros de sua própria organização.

No outro lado da cidade, Eva, ainda abalada pelos últimos acontecimentos, entrou escondida em casa. Sabia onde seu tio guardava dinheiro, apanhou algum. Vestiu algumas roupas da tia, maquiou-se, precisava parecer mais velha. Colocou na pequena mala seu computador pessoal. Tomou o cuidado de descartar seu celular. Caminhou por algumas quadras, apanhou um taxi e foi até uma biblioteca.

Enquanto engolia um sanduíche, iniciou suas investigações, cruzando informações disponíveis na Internet. Precisava de ajuda. Lembrou-se de um velho ex-policial, amigo dos pais, que algumas vezes conversava com ela quando ainda muito pequena. Ligou para ele, marcou um encontro.

O prefeito esmurrou a mesa. Entre os corpos carbonizados não estava o da menina. Iniciou uma caçada desesperada, comandada pelo delegado da cidade.

Eva encontrou Luiz, o ex-policial. Ele ouviu tudo e analisou todos os registros da garota. Iniciou alguns contatos. Sabia que corria riscos. Levou a garota para sua casa. O ex-policial preparou uma refeição, serviu-a, saiu recomendado que a garota descansasse, pois ele voltaria no dia seguinte.

Luiz voltou ainda de madrugada, surpreendendo Eva.

- Tenho boas notícias, um velho amigo chegará em breve – disse Luiz, antes de tomar uma ducha.
A menina estava apreensiva e enquanto o homem saia do banho, de roupa trocada, ouviu-se batidas fortes na porta.

- Dever se o meu amigo – disse Luiz, abrindo uma gaveta e retirando um anel que colocou no terceiro dedo da mão direita.

- Ele é confiável? – Questionou Eva.

Não foi necessária a resposta. A garota sentiu calafrios ao perceber a estampa no anel do ex-policial, a mesma do anel do prefeito. Diaz entrou na sala sacando uma arma e acertando um tiro no meio da testa de Luiz.

- Não quero mais testemunhas. Cuidem bem do corpo dele – recomendou aos dois brutamontes que removeram o cadáver rapidamente.

- Então era mesmo o senhor o líder da organização criminosa?

- Pobres Juan e Paola! Seus pais confiavam cegamente em mim. Eu os odiava. Eles me fizeram perder muito dinheiro.

- O seu verdadeiro negócio não é o tráfico de drogas. Estou enganada?

- Para uma garotinha você é muita experta. Somos traficantes, mas não só de drogas. Vendemos órgãos humanos, vendemos pessoas. Ontem foi um desperdício: perdemos seis corpos, quatro naquele posto e os dois de seus pais. Carbonizados não me renderam nada. Por falar nisso, ainda não decidi o que farei com você, se venderei em partes ou como escrava.

Diaz apanhou uma seringa no bolso e foi em direção da garota que se espremeu contra a parede. Não adiantaria gritar, o local era muito isolado. Ouviu-se um rangido no assoalho da casa. Diaz voltou-se para trás. Não teve tempo para reação. Uma figura encapuzada e vestida de negro deu-lhe um tiro fatal no peito. Já havia feito a mesma coisa com os dois capangas no carro.

Eva estava mais apavorada ainda. A figura esguia se aproximou, jogou a arma no chão, retirou o capuz, o que liberou os seus longos cabelos loiros.

- Você foi muito corajosa minha filha!

- Mamãe! – suspirou a menina em seus braços.

Eva percebeu num dos dedos da mãe um anel com a gravação em relevo de outra letra grega: Alfa.

- Continua o jogo, minha filha. Este confronto entre organizações dura séculos. O bem enfrenta o mal. Este anel lembra que depois do fim a um recomeço: um contra novecentos. Vamos, ainda não estamos seguras.

Adnelson Campos
24/06/2016

 

 

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