Jussara Lucena, escritora

Textos

Adágio

No dia em que nos despedimos, em frente ao Chafariz de São Jose das Botas, eu carregava nas mãos as malas, rumo a São Paulo. Ela mudaria na semana seguinte para São João Del Rey onde estudaria. Falamos dos nossos planos: eu seria um motorista de ônibus para sair dirigindo mundo afora, ela seria veterinária, pois amava os bichinhos. Ela me beijou pela primeira e única vez. Não tínhamos certeza dos nossos sentimentos, se éramos meio irmãos, amigos ou algo além. Só quando me afastei, percebi quanta falta Ligia me fazia.

Na volta, depois de tantos anos subi a ladeira revestida de pedras e com algum esforço superei os degraus da Igreja Matriz. A noite estava fria, precisava me abrigar do vento. Antes, admirei a cidade lá do alto da colina. No céu límpido, olhei para as estrelas, como fazia no meu tempo de garoto. Também era possível observar o casario e os contornos da Serra de São José. Minha cidade continuava serena, calma.

Entrei. A igreja estava cheia. Consegui acomodar-me. Todos os olhares já se dirigiam ao altar-mor. No mais absoluto silêncio, se podia ouvir o ruído do fogo consumindo os pavios das velas que iluminavam o ambiente. Apesar da pouca luz, o material do douramento se destacava em meio às pinturas e estátuas que povoavam o altar. As imagens de santos e anjos também pareciam admirar a beleza da jovem, que agora impunha seu violino. Em seu vestido branco, de pele alva e longos cabelos negros e ondulados, ela parecia mais um deles, saltado de uma das paredes.

Apanhei o folheto depositado no encosto do banco e busquei identificar a violinista. Incrível! Ligia, a minha pequena Ligia, hoje mulher feita, continuava linda. Lembrei-me de um dos dias em que brincávamos nas ruas de Tiradentes, descalços e pisando as ruas calçadas com lajes de pedra ou revestidas com pés-de-moleque. Passávamos em frente ao prédio da Prefeitura e, em meio a algazarra da turma, Ligia parou para escutar. Voltei para ver de que se tratava. Ela pegou em minha mão e me disse:

- João, ouça! O som dos anjos!
- É só um violino – respondi.
- É mais do que isso: um violino, um violinista e a música. É algo divino.

Ela conseguiu que eu parasse por alguns instantes, vencendo a minha inquietude.

- Eu tenho um sonho. Vou ser uma violinista e farei um concerto na Igreja Matriz – me disse ela com um belo sorriso.
- Mas você nunca tocou nada na sua vida! Para se tocar uma música como essa é preciso estudar, praticar. Nem violino você tem!
- Mas vou ter e eu sei que posso, esta música tomou conta de mim. Foi como se ela me chamasse: “Ligia, vem, ouve, toca por mim. ”
- Já estou ficando assustado!
- Calma, bobo. É só o espírito da música.

Tudo pronto no altar da Matriz de Santo Antônio. Concentrada, Ligia produziu os primeiros acordes. Arrepios tomaram conta do meu corpo. Depois, não tive como conter as lágrimas. Era a mesma música que ouvi quando criança. Talvez naquele dia fosse o espírito do próprio Bach que estivesse a convidando para executar o seu Adágio.

Neste tempo em que fiquei longe, me desliguei dos meus sonhos e resolvi correr o mundo. Deixei de lado a faculdade de engenharia, o emprego, os amigos e a minha querida Ligia. Éramos só eu e minha mochila. Foram três anos de estrada, alguns idiomas aprendidos, muitas horas de solidão. Numa de minhas últimas cartas eu disse a ela que só voltaria quando tivesse conquistado algo na vida. Até que chegou a hora, decidi voltar, retomar a vida, buscar mais estabilidade. Conclui meu curso, consegui trabalho e algum dinheiro para investir em meu próprio negócio.

Ligia tocava divinamente, com expressão serena, porém cheia de energia. Foram cinco minutos de intensa emoção. Ao final as lágrimas continuavam molhando meu rosto e eu aplaudia com entusiasmo.

Uma senhora ao meu lado falou, baixinho:

- Joãozinho, a nossa Ligia está linda, não é?
- Olá Dona Candinha! Tudo bem com a senhora? – Sorri lembrando do quanto saborosa era a comida dela e do carinho com que nos tratava.
- Olha meu filho, a minha neta está muito feliz. Ela sonhou com a sua volta por muito tempo, porém ela resolveu levar a vida adiante. Queria lhe pedir que não a atrapalhe.

Neste exato momento o mestre de cerimônia pediu a atenção de todos. Um rapaz surgiu da porta de entrada da igreja com um buquê de lindas rosas vermelhas. Foi até próximo dela, entregou as flores e beijou-a. Em seguida apanhou, no bolso do paletó, um par de alianças e a pediu em casamento.

Ela sorriu, o abraçou novamente e retomou o concerto, sem desviar o olhar do rapaz.

Despedi-me de Dona Candinha, que me disse:

- Não contarei que esteve aqui.

Saí. Passei a noite perambulando pelas ruas da cidade. Quando o dia quase amanhecia, fui até à beira do Rio das Mortes, no local onde costumávamos pescar à sombra de um grande jacarandá. Nos pés da árvore, no lado onde havíamos deixado a nossa marca, fiz um pequeno buraco e enterrei o anel que eu pretendia entregar para a minha Ligia. De volta à cidade, na varanda da casa dela, depositei o violino que eu comprara numa loja de antiguidades de Viena. Comprei uma passagem para o primeiro ônibus que deixaria a cidade e parti.

Procurei um banco isolado, fechei os olhos, pois não queria ver mais nada que me lembrasse o passado. Já não tinha mais forças para chorar. As conversas e ruídos no ambiente confundiam meu pensamento e as vozes pareciam se multiplicar aos milhares. Eu me esforçava para concentrar-me no vazio. Parecia impossível.

Apanhei a jaqueta e cobri a cabeça, numa atitude desesperada de afastar-me do mundo ao meu redor. Assustei-me com a freada brusca do veículo. Todos se levantaram para ver o que acontecia. Empilhados no corredor, os passageiros chamavam de maluca a garota que se jogara em frente do ônibus. O motorista não teve tempo de frear. Perdi-a para sempre.


Conto vencedor da seletiva da Revista Semeadura, em abril de 2017.

Adnelson Campos
15/10/2017

 

 

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