Jussara Lucena, escritora

Textos

Semeadores

Olho para o céu, que está límpido. Procuro por Sirius, pelas estrelas do Cinturão de Orion, por Escorpião no outro extremo do céu, pelos meus planetas. Não há nada de familiar no céu. As minhas constelações sumiram! O mais estranho: uma lua crescente está quase se pondo no horizonte, enquanto outra lua, cheia, desponta no lado oposto do firmamento. O chão sob meus pés é como o que sempre pisei, com uma vegetação um pouco diferente. A brisa sopra no meu rosto, leve como uma carícia. Leve também me sinto, é como se meu corpo tivesse a massa dos meus tempos de garoto.
Volto meu olhar novamente para o céu. Não são somente as estrelas e as luas que ocupam a visão da noite. Muitos pontos luminosos percorrem o espaço em grande velocidade. São espaçonaves a costurar o topo do planeta. As cores variam do branco ao azul mais intenso, também há luzes com tom mais avermelhado.
Me esforço, salto, flutuo sobre as árvores. A luz das luas evidencia o contorno das copas da vegetação e das colinas. Posso sentir o perfume das flores do campo, das folhas e frutos das árvores. As sensações não são novas, porém diferentes.
Agora, abaixo de mim há um riacho de águas cristalinas que reflete o luar. Desço, formo uma concha com as mãos e bebo. É como se a água provocasse uma espécie de reação química, pareço mais forte e meu corpo ainda mais leve. Olho para a minha mão, para as pontas dos meus dedos, é como se emanassem luz.
Subo um pouco, olho em direção ao horizonte, quilômetros à frente, percebo a luminosidade se projetando ao espaço. É uma cidade. Aproximo-me do local e das criaturas que o habitam. Agora sou um deles, seres quase transparentes e que apesar da sensação de solidez e de possuirmos todos os sentidos, inclusive do tato, é como se não ocupássemos lugar no espaço.
No topo de uma das construções, um símbolo me chama a atenção. Lembrava-me de tê-lo visto em imagens aéreas de plantações na Terra: os agroglifos me intrigavam. Aqui os mesmos círculos e linhas perfeitos misturam-se ao desenho de sementes estilizadas e estampam o ponto de pouso. Desço e toco o topo da construção, toda feita de cristal. Têm luz própria, talvez produzida pelas mesmas paredes de vidro. O aglomerado de edifícios parece ter três vezes o tamanho da maior cidade da Terra. O complexo viário é inimaginável para a minha realidade.
Um ser se aproxima, pede autorização para comunicação. Se apresenta: Wallech. Não usa os lábios, não há cordas vocais em funcionamento. Eu o ouço, compartilhamos pensamentos. Ele me convida para entrar. À nossa frente as portas se abrem, os elevadores se deslocam, tudo funciona como conectado aos nossos pensamentos, obedecem aos nossos movimentos e intenções, organizada e silenciosamente.
Chegamos a uma sala ampla. Projetam-se imagens tridimensionais. São painéis de controle virtuais. Nossos corpos são incorporados ao sistema. Cria-se um mapa de universos paralelos. É traçado um roteiro para uma viagem pelo tempo e espaço. Aprendo a ouvir os sons e agora percebo mais vida a nossa volta.
Começamos nossa viagem numa velocidade absurdamente maior que a da luz e em frações de segundo passamos de um mundo a outro utilizando corredores microscópicos onde somos transportados sem esforço.
Nunca imaginei uma diversidade de seres assim. Mundos incríveis, diversos estágios de evolução. Construções fantásticas contrastam com a natureza de mundos primitivos, tudo num mesmo universo. Algumas formas de vida se desenvolvem em mares, outros em subterrâneos. Surpreendentes são as formas que ocupam mundos gasosos. A vida se multiplica sob diversas formas na imensidão dos cosmos.
Wallech carrega uma placa de cristal que em muito supera a tecnologia dos computadores de meu tempo. Também serve como coletora de dados, similar a um escâner. Entre as informações obtidas inclui o código genético de cada criatura estudada.
Os espécimes foram pré-selecionados, parecem-me os mais inteligentes dos grupos. Eles não nos percebem, mas meu companheiro de viagem sopra palavras nos seus ouvidos. Eles as recebem como insights criados por suas próprias mentes. “São sementes lançadas em solo fértil” – me diz Wallech, simulando no ar parte do símbolo do topo do edifício.
Num trecho do percurso feito pelos mundos, ele projeta, com a ajuda da placa, novas imagens tridimensionais do DNA das criaturas e me mostra uma correlação entre o código genético de cada uma. Há um elo que nos une, posso perceber na representação. Não fosse isso, seria impossível compreender o que acontece e visualizar o que presenciamos. Tudo se ordena, se relaciona. A mesma força que cria, destrói e reconstrói, a nós todos.
O tempo agora parece não fazer sentido e presenciamos transformações que na minha escala de tempo seriam necessários milhões de anos para acontecer. Em poucos segundos, meu cérebro foi capaz de absorver o conhecimento de muitas vidas e não consigo imaginar como eu teria essa capacidade de armazenar tanta informação a não ser por acreditar que o universo é uma extensão da minha mente e da mente de todas as criaturas que o habitam.
Curioso eu pedi a Wallech que me levasse até a Terra, escolhi o ano de 2328. Meu amigo me disse que seria melhor ver algo diferente. Insisti em visitar os descendentes do meu povo. Ele pensava justamente nisto. Viajamos até uma lua próxima de Saturno: Encélado. Num ponto do satélite havia uma colônia de seres terrestres. Homens e animais se adaptaram ao clima gélido, manipulando os materiais disponíveis, geravam seus alimentos, separavam a água e retiravam da atmosfera o oxigênio que precisavam para a sua vida. Germinavam as sementes trazidas da Terra. Muitas crianças habitavam o lugar, evidência de que a colonização se tornara possível.
Continuamos nossa viagem e quando nos aproximamos de um novo sistema estelar, perdi o controle sobre mim mesmo. Os pensamentos de muitos seres ocuparam minha mente, gritando como a multidão num estádio de futebol, só que de forma silenciosa, porém perceptível. Tentei me concentrar e minha cabeça começou a doer, como se não suportasse. Eles queriam nos expulsar, se sentiam incomodados com nossa presença. Minhas energias se esvaíram, meu fim parecia próximo. Meu amigo sentiu o mesmo. Um terceiro ser surge do nada, se aproxima, com suas mãos nos resgata.
Perdi a consciência por alguns instantes. Ouço vozes a minha volta. Estou deitado no que talvez seja a cama de um hospital. Estranhamente a linguagem não me é compreensível. Projetado na parede de vidro do quarto está o símbolo que vi no topo do edifício. Um dos círculos se sobressai e olhando com um pouco mais de cuidado, em seu interior há uma semente e nela uma estrela de seis pontas. No centro de tudo, uma pirâmide com um olho que observa e ilumina.
Os seres impõem sua mão sobre mim. Meu companheiro de viagem está deitado na cama ao lado. O conteúdo azul de uma ampola é injetado em meu braço. Sinto como se eu fosse compactado num minúsculo ponto, a luz do olho me atrai para o símbolo na parede. Resta o silêncio e escuridão.
Sentado na varanda do velho sítio, por entre nuvens vejo a velha Lua. No rádio, uma bela canção. Na mente a lembrança do mesmo sonho vivido há décadas e a esperança de, num outro dia, completar minha jornada.

Texto selecionado para compor a Antologia Galáxias, organizado pela Editora Illuminare em 2017.

Adnelson Campos
22/07/2018

 

 

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