Jussara Lucena, escritora

Textos

Gênese

“Era a terra sem forma e vazia; trevas cobriam a face do abismo, e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas”.
Hoje, quando você enxerga a explosão de minhas quedas, onde a vastidão da água grande se encolhe e é tragada pela Garganta do Diabo não tem ideia da metamorfose pela qual passei.
Sou de certa forma, jovem. Pelo que me lembro, no princípio, tudo aqui era como se fosse um imenso oceano no interior de um único continente. Depois, a terra começou a se mover, se dividir, transformando a paisagem. Para você, na sua breve existência, tudo parece ter acontecido há muito tempo. Na minha escala de tempo, parece que foi ontem.
Quando a noite chega e me encobre com um manto de estrelas, posso perceber quanto tempo se passou. As constelações que você nomeia hoje, não eram exatamente assim quando comecei a minha transformação. Sim, a posição dos astros talvez seja uma espécie de relógio, registrando a minha existência, testemunhando minha mutação.
Experimentei a aridez do deserto, o gelo de eras glaciais. Presencie o surgimento de grandes florestas e depois sua extinção. Talvez a maior modificação, a que mais impactou a minha jornada, tenha vindo na época em que vieram os derramamentos. O magma que brotava do centro da Terra cobriu de camadas de basalto quase tudo ao redor. O chão rochoso formado serviu de berço para transportar águas como as do Iguaçu e do Paraná desenhando seus caminhos antigos. Algumas águas se guardaram, onde a rocha era mais porosa, formadas pelas dunas de areia do deserto que um dia existiu, como a do aquífero que vive abaixo de nós.
Outras, buscavam o caminho do mar, como as do Iguaçu que encontravam o Paraná. O grande rio não podia desistir da sua missão, do seu caminho, então desgastou as rochas que lhe serviam de obstáculo e com o tempo o meu cânion começou a tomar novas formas, enquanto o volume de minhas águas crescia.
As duras rochas do derramamento foram se transformando, e o intemperismo também foi gerando o solo de terra “rossa” que me margeia. As grandes florestas voltaram e com ela os animais. No início gigantes, depois, aos poucos, com o aumento de sua população e a escassez de alimentos, foram ajustando o seu tamanho à nova realidade.
Nesse tempo, a Terra passou por mais de 150 milhões de voltas em torno do Sol, até que, mais recentemente, conheci um animal diferente. Ele andava sob duas patas e me olhava como nunca fui observada antes. Sim, foram seus antepassados. Pescavam, coletavam, brincavam com o fogo, como os raios que por várias vezes incendiavam as florestas. Os Guarani emprestaram o nome ao aquífero e batizaram o rio que mata a minha sede. Homens brancos registraram a minha existência em cartas ao Mundo Antigo e tentaram tomar posse das minhas águas.
Me chamam de Maravilha da Natureza, mas a natureza é que é maravilhosa. Lendas e mitos tentaram explicar o que até então era inexplicável. Na história contada pelos caingangues, M’boi, o deus serpente, em uma explosão de raiva por perder Naipi, fez surgir a fenda que teria criado minha estrutura. Tupã, então mergulhou o filho M’boi na Garganta do Diabo, Transformou Tarobá em árvore que não conseguia alcançar Naipi, convertida numa das rochas de minhas cascatas. Tarobá passou a contemplar sua amada pela eternidade sem poder alcançá-la.
Vocês homens, com suas construções conseguiram o que para Tarobá era impossível. Pontes, passarelas, edifícios ocupam parte do espaço ligando a floresta às rochas e experimentando o frescor de minhas brumas. Tudo frágil, temporário diante da grandeza, do abismo do tempo, da força do meu turbilhão de águas.
Permanecerei por aqui por mais séculos que a sua espécie, mas enquanto coexistirmos, lhes ofereço a visão de minhas quedas o som incomparável da água fluindo pelas rochas, os nevoeiros de arco-íris descritos por Kolody. Aproveitem, desafiem a velocidade e a fúria de minha correnteza, apreciem o movimento das andorinhas que se abrigam nas fendas de minhas rochas sob as águas. Se for capaz, ouça o murmúrio de Naipi que espera pelo perdão e por um novo abraço de Tarobá.
Eu, espero a vontade da Mãe Terra, até a formação de uma nova paisagem.
Quanto a você, obrigado pelo encontro, por este momento registrado nesta pequena fração de tempo entre duas eternidades.

Menção Honrosa no Concurso Cataratas Maravilha da Natureza 2021

Adnelson Campos
26/03/2022

 

 

site elaborado pela metamorfose agência digital - sites para escritores